Maracatu em Pernambuco

Um leão que concilia valorização e descaso para manter a coroa de 150 anos

Isabelle Figueirôa
Isabelle Figueirôa
Publicado em 31/07/2014 às 16:02
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O Maracatu Leão Coroado, liderado pelo babalorixá Afonso Aguiar, tem se esforçado para manter viva a história do grupo. Memória da agremiação se confunde com roupas no varal / Foto: Luiz Pessoa/ NE10

O Maracatu Leão Coroado, liderado pelo babalorixá Afonso Aguiar, tem se esforçado para manter viva a história do grupo. Memória da agremiação se confunde com roupas no varal Foto: Luiz Pessoa/ NE10

O Dia Estadual do Maracatu, celebrado nesta sexta-feira (1º), foi instituído em homenagem ao nascimento do mestre Luís de França, herdeiro de um dos maracatus mais antigos em atividade no Brasil: o Leão Coroado. Há mais de 10 anos a agremiação fez uma turnê nacional; em 2005 lançou um CD, quando tornou-se Patrimônio Vivo de Pernambuco. Também é considerada Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura. De lá para cá, o grupo - hoje liderado pelo babalorixá Afonso Aguiar - tem se esforçado para manter sua história viva, conciliando tradição e modernidade, valorização e descaso.

Mestre Luís de França já contava com mais de 90 anos quando, em outubro de 1996, a Comissão do Folclore de Pernambuco organizou uma reunião para decidir o futuro do Maracatu Leão Coroado. O encontro aconteceu no Sítio de Pai Adão, a mais antiga casa de culto Nagô de Pernambuco. Participaram da reunião o babalorixá Manoel do Nascimento Costa, mais conhecido como Manuel Papai, e José Fernandes, da Comissão, além do babalorixá Afonso Aguiar, que foi apontado como sucessor de Seu Luís.



Ao contrário do que aconteceu com Mestre Luís, que recebeu a missão das mãos do pai - o ex-escravo Loreano Manoel, um dos fundadores do Leão Coroado -, Afonso entrou para o maracutu por escolha dos orixás. O pai de santo não tem parentesco de sangue com os ancestrais do grupo. "Somos irmãos em religião", justificou. Ao contrário de Seu Luís, que tinha um temperamento severo e era muito instransigente, Afonso desenvolveu estratégias para manter o maracatu, mas sem perder as tradições características do grupo. Sob seu comando os integrantes não são obrigados a seguirem o culto do Candomblé ou seus compromissos. Ele, porém, cumpre todos os rituais religiosos exigidos para a realização do cortejo.

A lei de 11.506 de 23 de dezembro de 1997 oficializou o dia 1º de agosto como Dia Estadual do Maracatu

Mestre Luís de França, mais do que um babalorixá, era um oluô, sacerdote máximo do Candombé. "Ele foi um mito, um dos únicos do Brasil. Enquanto a maioria joga com 16 búzios, ele jogava com 32", destacou Afonso. Com Seu Luís, Afonso Aguiar, hoje com 66 anos, pai de santo do Centro Africano São João Batista, aprendeu muito sobre Candomblé e Maracatu, principalmente, durante os 18 dias que o mestre passou na sua casa antes de morrer, vítima de duas paradas cardíacas, em maio de 1997.

Sérgio Bernardo/ PCR
Apresentação do Maracatu Leão Coroado no Bairro do Recife - Sérgio Bernardo/ PCR
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Comemoração dos 150 anos do Maracatu Leão Coroado - Sérgio Bernardo/ PCR
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Baiana do Maracatu - Sérgio Bernardo/ PCR
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Baianas em apresentação no Bairro do Recife - Sérgio Bernardo/ PCR
Sérgio Bernardo/ PCR
Apresentação do Maracatu Leão Coroado - Sérgio Bernardo/ PCR
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Rei e rainha do maracatu - Sérgio Bernardo/ PCR
Sérgio Bernardo/ PCR
Água de cheiro durante apresentação do Maracatu Leão Coroado - Sérgio Bernardo/ PCR
Sérgio Bernardo/ PCR
Reinado do Leão Coroado - Sérgio Bernardo/ PCR
Alexandre Auler/ acervo JC Imagem
Ensaio do Maracatu - Alexandre Auler/ acervo JC Imagem
Alexandre Auler/ acervo JC Imagem
Naná Vasconcelos em ensaio do Maracatu Leão Coroado - Alexandre Auler/ acervo JC Imagem
Alexandre Belém / acervo JC Imagem
Luis de França que assumiu o Leão Coroado em 1964 - Alexandre Belém / acervo JC Imagem
Bernardo Soares / acervo JC Imagem
Afonso é o atual mestre do Maracatu Leão Coroado - Bernardo Soares / acervo JC Imagem
Bernardo Soares / acervo JC Imagem
Com a morte de Luís de França, o mestre Afonso assumiu o Maracatu Leão Coroado - Bernardo Soares / acervo JC Imagem
Chico Porto / JC Imagem
Calunga - representando a ancestralidade em homenagem à Iansã - Chico Porto / JC Imagem


Como legado do maracatu, Afonso recebeu sete alfaias sem couro, o estandarte - que estão misturados a um monte de entulhos na residência dele -, um leão do carro alegórico desgastado, as espadas, o pálio e as calungas Dona Clara e Dona Isabel, elementos sagrados do Candomblé que simbolizam uma entidade ou rainha já morta. Dona Clara, ancestral do terreiro ("Espírito nosso pós-morte", nas palavras de Afonso), veste-se de amarelo em homenagem a Oxum - orixá da beleza e da riqueza -, enquanto Dona Isabel, que representa a princesa Isabel, usa um vestido rosa, cor de Iansã, orixá dos ventos e das tempestades.

Patrimônio do Leão Coroado é misturado a entulhos

Patrimônio do Leão Coroado é misturado a entulhosFoto: Isabelle Figueirôa/ NE10

Num galpão próximo à sua residência e ao terreiro onde trabalha, em Águas Compridas, Olinda, mestre Afonso instalou a atual sede do Maracatu Leão Coroado. O local, desorganizado, não é adequado para guardar tanta história e cultura. Vestimentas e instrumentos do cortejo se misturam a roupas íntimas estendidas em varais improvisados numa estrutura de alvenaria sem reboco. Mestre Afonso explica que a situação financeira do grupo é muito delicada. "Muitas vezes nos apresentamos sem cachê, só para divulgar nossa tradição", lamenta.

Com mais de 150 anos de história, o Leão Coroado precisa de apoio para preservar sua memória, que também faz parte da história de Pernambuco. Segundo ele, por ter o título de Patrimônio Vivo, o maracatu recebe uma bolsa de R$ 2.130 do Governo do Estado. Esse valor, no entanto, não cobre os gastos do maracatu. Os trajes do Rei e da Rainha do Maracatu, importantes figuras do cortejo, são os mesmos há quatro anos e estão rasgadas.

"Essa situação se repete na grande maioria das agremiações, cujas sedes são de um estado lastimável", reconhece o coordenador de Cultura Popular da Secretaria de Cultura de Pernambuco, Paulo Otávio. Sobre a situação do Leão Coroado, o coordenador disse que a quantia que recebem por ser Patrimônio Vivo é um "prêmio para que os mestres transmitam saberes, não é uma bolsa de reforma nem manutenção de fantasias", explica.

Dia Estadual do Maracatu é em homenagem ao Mestre Luís

Dia Estadual do Maracatu é em homenagem ao Mestre LuísFoto: acervo JC Imagem

Segundo ele, o Governo do Estado valoriza as manifestações culturais como um todo com o projeto Pernambuco Nação Cultural e, mais especificamente, o maracatu com o Brincadeiras de Terreiro. "Se conseguirmos fomentar as brincadeiras nos terreiros, aí sim eles terão condições de reformar, manter o adquirir suas sedes".

Recentemente, na programação do Festival de Inverno de Garanhuns, o grupo foi convidado para se apresentar no Palco Cultura Popular no último dia 20. "O cachê combinado foi de apenas R$ 10 mil. Isso para cobrir as despesas com transporte e alimentação de 54 pessoas", lamenta. Enquanto isso, no mesmo evento, apresentaram-se Vanessa da Mata e Titãs, que receberam da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), R$ 123.400 e R$ 130 mil, respectivamente.

"Isso é uma questão de mercado, porque quem determina o valor dos artistas é o mercado. Você sabe que o showbuzimness é mais atrativo para o turismo", completou Paulo Otávio. 



BREVE HISTÓRICO - A história do Maracatu de Baque Virado (ou Maracatu Nação) se confunde com a História do Brasil e do Candomblé, em particular com as tristes memórias da escravidão no País.

Os Maracatus Nação surgiram onde atualmente se localiza o Estado de Pernambuco, principalmente nas cidades do Recife, Olinda e Igarassu, durante o período escravocrata, provavelmente entre os séculos 17 e 18. É um sincretismo de culturas ameríndias, africanas e europeias.

A explicação mais aceita entre os estudiosos sobre a origem do Maracatu Nação é a de que ele teria surgido a partir das coroações e autos do Rei do Congo, lideranças políticas negras intermediárias entre o poder do Estado Colonial e as mulheres e homens de origem africana. A prática teria sido implantada pelos colonizadores portugueses no Brasil e, por consequência, permitida e difundida pelos senhores de escravos.

 

 

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